No Bico do Corvo

Pés no chão

Passados alguns dias depois da eleição, praticamente uma semana, pode ser, seja eficiente pensar o cenário de uma maneira mais prática. Vamos esfriar a cabeça e tentar entender o que acontece, longe de rusgas, lados, enfim, como cidadãos brasileiros ordeiros e pacíficos, com os olhos no futuro. Necessitaremos lembrar um pouco o passado para arrefecer os sentidos.

Os protestos

Embora muitas pessoas não concordem, em especial as mais aproximadas pelo governo eleito, as manifestações e demonstrações de repúdio ao resultado das eleições são legítimas.

O que não está certo

O ilegítimo foi fechar as estradas e obstruir o direito de ir e vir. Acontece que perder causa isso, o descontentamento, inconformismo, revolta, sobretudo quando calçaram uma estrada de factoides ao longo do processo, antecipando teorias de fraudes, desconfiança nas urnas e a literal avacalhação de todos os meandros do sistema, como o país fosse uma pirâmide invertida, com a base frágil, pronta para causar um monstruoso desmoronamento. Isso foi o tempo todo espalhado pelas redes sociais e também pelos políticos. Aliás, a discussão beirou ao vergonhoso e não podem negar.

A composição

A fórmula do descontentamento parece ser complexa, mas não é. Ela tem a base no antipetismo, na soma de escândalos e processos que foram se acumulando desde a revelação do “Mensalão”. No poder depois de 16 anos, o PT e seus aliados foram caçados, esmiuçados, depenados e por fim desmontados, e é assim o conceito que há entre situação e oposição, onde duas forças reagentes e contínuas, em algum momento, ocasionarão um desfecho.

O desmonte

O resultado final foi a queda de Dilma, a prisão de Lula, de ex-ministros, e o desvendar de uma série de abusos e corrupção. Boa parte disso ainda está na Justiça e são fatos muito recentes, logo, essas mesmas pessoas voltarem à vida pública, causaria inevitavelmente um rebuliço. Ainda depois da eleição de um algoz, o Jair Bolsonaro. Mas não vamos aqui entrar no mérito da Justiça e como ela é feita, sobretudo num país onde as reformas são adiadas a todo momento. Vale o que diz a Constituição. 

A explosão

Um resultado tão espremido, estreito, envolvendo exatos 124.252.796 votos divididos entre vencedor, perdedor, brancos e nulos, causou a bagunça no coreto; no meio disso, a diferença é ínfima, de apenas 1,8%. Vamos combinar, o inconformismo de uma massa de 49,1% é difícil de dominar.

E isso como se divide?

Segundo a avaliação de muitas pessoas, cerca de 25% dos que votaram em Jair Bolsonaro engoliram o resultado quietinhos, 60% protestou de maneira contida, e 15% foi para as ruas. Nessa fração mais exultante, praticamente sem fragmentação, há um pensamento sólido de revolta, um fundamentalismo inflexível e indômito. Predomina nessa massa – ela não é pequena – uma visão truncada e torpe sobre os adversários, supostos colaboradores, jornalistas no exercício da profissão, autoridades constituídas e pior, contra o sistema ao qual todos deveríamos obedecer, porque fora dele está a subversão, confundida com liberdade de expressão. Transgressões, ameaças, imposições, estão sendo cometidas em larga escala.         

Listas ameaçadoras

Em todo o país e não deixaria de acontecer em Foz do Iguaçu, circulam listas de empresas, prestadores de serviço ou considerados supostos “apoiadores e simpatizantes do PT”. Tais relações sugerem medidas conflituosas, com bloqueio comercial, pressão e outras formas de intimidação. Para começo de conversa, Lula não foi eleito apenas pelo PT e sim por um número considerável de legendas, ao todo 16. Ameaçar comerciantes e profissionais é algo intolerável.

A vida comum

É preciso imaginar que essas pessoas geram empregos, recolhem impostos, mantém a cadeia produtiva ativa, independentemente de suas convicções ideológicas; possuem um CPF, identidade, CNH, pagam contas, adquirem produtos, utilizam hospitais, escolas, fazem tudo igual aos demais. São brasileiros, enfim, e, não seres estranhos, inferiores ou superiores, que desmereçam viver em paz e com dignidade. Vamos além: até pouco tempo muitos eram amigos, parentes, gente do convívio diário. O senso comunitário não pode se perverter assim, com esse divisionismo. Assim, nada acabará bem. 

A história

Em tempo algum, e em lugar nenhum, o extremismo da direita ou da esquerda deu certo. Pelo menos até agora, naquilo que a história registrou. Salazarismo, Stalinismo, Apartheid, tudo isso caiu, como ditadura evaporaram. Os mais propalados duraram menos ainda como o caso do fascismo italiano e o nazismo de Adolf Hitler e seus seguidores. Hoje o mundo está repleto de movimento de direita, ou de esquerda, como acontece no Brasil, mas com diferentes objetivos. A Itália elegeu Giorgia Meloni no discurso contra as imigrações; Benjamin Netanyahu deverá voltar ao poder em Israel para endurecer ainda mais contra a causa palestina; as ideias de Trump, cuja América é First, em “primeiro lugar” desprezando o resto, lidam com o peso democrata e a Justiça. Porque será, isso acontece?

A canseira

O extremismo cansa e acaba privando a liberdade coletiva, do mesmo jeito que o socialismo desagrada, quando propõe distribuir renda e, no fim das contas, alguns dos membros levam o dinheiro para o próprio bolso. O Brasil bem que poderia aproveitar o momento e escolher um modelo ideal e que agrade a todos. Se prestarmos muito a atenção, isso está acontecendo. Nos últimos dias de campanha, Bolsonaro passou a dizer que a direita estava mais ao centro, e, o Lula, eleito, fala o mesmo da esquerda. Isso acontece porque a maioria dos políticos em atividades não querem nem um lado e nem o outro. O que falta é o povo cair “na real” e se localizar. Basta ler os noticiários: quem apoiava a direita, põe as cartas na mesa para se entender com a esquerda.  

A lição da história

A influência coletiva às vezes foge de controle. Quando Hitler se fortaleceu, convencendo a Alemanha que o seu modelo era o ideal para sair da opressão, causada pela Primeira Guerra Mundial, ganhou apoio. Temos aí mais uma vez um exemplo de questão externa. Os alemães queriam recuperar o orgulho, desenvolver, crescer por meio da indústria, comércio e recuperar territórios perdidos.

A estrada aberta

O nazismo encontrou uma enorme brecha para se firmar, mas para isso, adotou medidas conservadoras; primeiro reforçando o brio, por meio da propagação de uma raça genuína e que depois, passou a propor a superioridade. Não demorou, foram para cima dos pilares econômicos e comunicação, setores dominados por judeus e com uma massa organizada, no poder, deu no que deu.

Êxtase e agonia

De potência ressurgida das cinzas, em 1938, a Alemanha acabou em ruínas, apenas oito anos depois, com os líderes presos ou enforcados por meio de tribunais, caçados aos quatro cantos do mundo, ou convertidos em cinzas, depois de praticarem o suicídio. Uma tragédia imposta aos responsáveis e ao povo. Mas o fato é que conseguiram, à duras penas, por meio de lições muito tristes, reerguer e transformar o país em grande potência, diga-se, a mais equilibrada na atualidade. Um país justo e democrático.   

Momento crucial

Quando o nacional-socialismo começou a ganhar massa muscular na Alemanha, algumas atitudes saíram do rumo. Forças paramilitares dominavam o país; nada mais eram que agrupamentos de fervorosos seguidores da nova ordem, inflexíveis, de absolutismo fervoroso, movido por uma máquina de propaganda, cuja predisposição era trabalhar a mentira de forma tal, que “depois de mil vezes contada se tornaria verdade”, como descreveu Joseph Goebbels. Começaram a circular boatos de perseguição e listas de estabelecimentos que deveriam sofrer boicote. Essa ideia se materializou em eventos truculentos, como foi o Kristallnacht, entre 9 e 10 de novembro de 1938, conhecido como A Noite dos Cristais, onde estabelecimentos de judeus tiveram as vidraças destruídas, sendo que muitos foram incendiados. Acreditem, as listas que surgiram nos últimos dias no Brasil, carregadas de ódio, ocasionaram essa sensação horripilante, inevitavelmente lembrando o passado e associando-o ao presente.   

Perversão

Mas não queremos, de maneira alguma, imaginar que no Brasil algo assim esteja sendo despertado. Preferimos pensar que as fake news são apenas ferramentas eletrônicas; que a insistência em favor das mentiras não passa de burrice; que a saudação parecida com a nazista em Santa Catarina foi um ato de ingenuidade; que as listas contra supostos adversários são atos impensados e momentâneos, e, que o ódio, é apenas aparente, afinal de contas tudo isso não combina com a definição do povo brasileiro, formado predominantemente por pessoas cordiais, respeitosas, com espírito pacífico, ponderado, analítico e trabalhador.

Sem controle

Isso preocupa, porque imaginava-se que um pedido do presidente Bolsonaro fosse aceito abruptamente, sem discussão, no entanto, até ontem muitas rodovias ainda estavam bloqueadas, o que causou enormes prejuízos em muitos setores. Sem contar que outros reflexos virão, como possíveis aumentos nos produtos alimentares, combustíveis e itens diversos.

E agora?

Tomara essa porcentagem indomada de brasileiros reflita o que é melhor para a maioria e não insista em proclamar distúrbios que prejudiquem a Nação. Isso não está longe de acarretar o surgimento de confrontos, e acirramento maior da sociedade, o que é uma tristeza. Subverter a ordem não é a saída para arrumar o país, tampouco a maioria que votou na alternância de poder não vai se mudar para o Paraguai, Argentina ou outro país; tomara esses ânimos amainem um pouco, de um jeito que a política volte a ser discutida sem tiros ou facadas, tapas ou porretes. O Brasil é bem maior que isso.

Uma comparação esdrúxula

Nem se compara, mas vamos ilustrar uma situação para pensar: Palmeiras e Corinthians disputam uma partida de final de campeonato. O jogo não terá prorrogação e nem disputa em penalties e, durante os 90 minutos regulamentares, houve discussões, encrencas, xingamentos, expulsões, árbitro e bandeirinhas ameaçados, toda a classe de ocorrências em disputa assim, pisões, caneladas, dedos nos olhos e, no fim, uma das equipes vence por um gol aos 45 minutos do segundo tempo. O VAR disse que foi legítimo. Acabou-se o campeonato e o vencedor levanta a taça, sob vaias da torcida adversária e aplausos do restante que estava no estádio. Do lado de fora do estádio vários quebra paus, cavalaria separando os fanáticos, ônibus apedrejados, e a costumeira troca de gentilezas nas redes sociais, com palavrões dos mais cabeludos. Esse nervosismo acabou dentro de inúmeras residências, onde há torcedores dos dois times. Uma diferença assim só se resolverá de duas maneiras: uma é a possibilidade de a Justiça desportiva descobrir irregularidades que cancelar a partida e a outra, é aguardar pela final de outro certame. Nos dois casos, não adianta em nada dormir nas calçadas do estádio. Levando o assunto para o gramado político, vencedores que tratem de convencer que jogaram limpo e perdedores se prepararem para o que virá, mas que tudo aconteça dentro das regras, porque elas são fundamentais. 

E o que mais?

Mais nada. Um bom final de semana a todos. Vamos parar para pensar e o que queremos para o nosso país. Abrace um ex amigo, que você converteu ignorantemente em adversário; se der partilhe financeiramente com ele uma caixa de cerveja, ou garrafa de vinho, um pedaço de costela. Falem dos tempos bons, ouçam a música, dancem com as esposas e as crianças. Lembrem-se que ante de serem petistas ou bolsonaristas, são de carne e osso, com sangue nas veias, filhos, pais, avós e compartilham essa dádiva proporcionada pela liberdade e que se chama sociedade. Unam-se para fiscalizar a política e não para criar falsos deuses e demônios.

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