Coluna de Opinião
“PC Polaco” e o Cinema
Declaro que antes de pertencer a qualquer outra arte e ofício, pertenço ao cinema. Comecei nas artes plásticas e gráficas, atividades que juntei ao jornalismo, mas antes disso vivia na Rua do Triunfo, a conhecida boca do lixo, carregando cabos, holofotes e frequentando os “set’s” da “roliúde paulistana”. Foi o mesmo no Rio.
Quando escrevi que completei 50 anos no ramo da comunicação muita gente duvidou e fez caso. É simples: basta fazer as contas: 65 menos 15, resulta nos anos sonhando em fazer livros, filmes, desenhos animados, jornais, revistas e tudo o mais que inventei para sobreviver; tornei-me um peixe de aquário com a água pela metade, olhando o mar lá fora. Que barbaridade! Mas até que o saldo não é ruim entre imaginação e realização. Mas poderia ser melhor se não fizesse tantas coisas misturadas e ao mesmo tempo. É culpa da ansiedade e juro que ainda vou aprender. Dá tempo.
Em verdade, o ano de 2024 tem sido muito triste, porque pessoas queridas estão indo embora aos montes. Famosos ou não, todos os amigos possuem o mesmo peso e na função da informação, me transformo, aos poucos, em experiente redator de obituários. Que tarefa mais medonha! Em cada texto vai junto um pedaço da alma. Mas não escondo que a morte de Ziraldo e, ontem, do Paulo Cesar Pereio doeram e bem doídas.
Há neste caso, uma soma de recordações, porque conheci os dois na mesma época, por volta de 1973, no Rio de Janeiro, quando tinha apenas 15 anos. Para sobreviver trabalhava como office-boy ciclista, buscando textos de jornalistas para as redações, num tempo que a palavra “fax” nem existia, o que dizer do aparelho, que hoje é peça de museu? Celulares só em filmes de ficção!
Para completar o tempo, fazia bicos nas companhias cinematográficas, e, entre umas e outras, colei no também saudoso Hugo Carnava, quando produziu e dirigiu o filme “Vai Trabalhar Vagabundo”. No elenco estavam o Pereio e a Neila Tavares, grávida da Lara, uma grande amiga nos dias atuais. Ela veio fazer uma palestra em Foz e lembrei o caso; não demorou até o Pereio aparecer. Não esqueço outra passagem: em São Paulo, bem perto dos anos 80 e antes de chegar a Foz, Pereio fez parte do elenco de “A Revista do Henfil”, no TBC que havia no Bairro do Bexiga. Certa noite fomos beber um vinho e ele disse: “preciso te apresentar um cara”. Caminhamos até uma cantina e não demorou, apareceu ninguém menos que o Plínio Marcos. Há um ponto bem interessante para emendar: uns dez anos antes, o Pereio disse a mesma coisa no Rio e lá fomos até o Cervantes, esperar um outro cara, Nelson Rodrigues. Em Foz, depois de décadas e duas garrafas de vinho eu lembrei: “Polaco, se não fosse você e o teu apreço por um bom vinho, eu jamais teria conhecido os dois dramaturgos mais importantes da nossa história”.
Em momentos assim, é preciso acompanhar a memória, que vai e vem. Lembro que com apenas 15 anos de idade, desempenhava a tarefa a de carregar cabos, caixas, holofotes, ajudar na composição de cenários, mas isso já era o máximo. No cinema ou nos jornais, em contato com tanta gente importante, foram muitas as amizades e, considerando que as pessoas eram bem mais velhas, tem sido uma dureza conviver com tantas despedidas.
PC Pereio já havia realizado outro trabalho em Foz nos anos 1990, a peça “O Analista de Bagé”; em cima da hora, precisei improvisar um cenário, no cineteatro Carimã. Mas seu retorno foi bem mais envolvente e assim, ele participou de uma das últimas produções no cinema, considerando a longa carreira com mais de meia centena de papéis. Mauro Hanzen e Rudi Favaretto toparam produzir um longa-metragem com a assinatura da Vison Art, e, na parceria, escrevi e dirigi “Boteco, Mil e Uma Vezes Boteco”. Foi uma dádiva contar com o Pererio para fazer a narrativa, abertura, cenas de passagem e o encerramento, com a sua voz maravilhosa, mesmo que já bem arranhada pela idade e os sustos com a saúde.
Quando enviei o roteiro ele disse que toparia e dali uns dias estava nas dependências do Bar do Juca participando das gravações. Ficou uma semana e meia na cidade, passeou, se divertiu, e, colaborou muito com a produção, sobretudo ao saber que se tratava de um laboratório para artistas e produtores locais. Todos sentiram-se honrados em trabalhar ao lado de um dos maiores atores da dramaturgia, cinema e televisão; pessoa extremamente sensível e humana, apesar das tiradas sacanas e a pinta de malandro.
Pereio também mostrou sua habilidade no pano verde da sinuca, desafiado por Ermínio Gatti e Mário Du Trevor Júnior, que não venceram sequer uma partida, com muitas horas jogando nas mesas do Carimã, conversando e relembrando os bons tempos da noite, música e, dos papéis inesquecíveis. Mário chegou a se hospedar no hotel para fazer companhia ao ator, de tanto que ficaram amigos. Os três agora terão tempo de sobra para retomar as conversas.
O “Boteco” não foi inscrito em festivais e nem exibido comercialmente. A decisão não foi fácil, mas no fim acertada. Quem viu elogiou. Rubens Ewald Filho nos premiou com a sua crítica: “Essa produção não pode ser chamada de ‘Nacional’ e sim de um senhor filme brasileiro, pois não há tema de tamanha brasilidade que não seja um ‘boteco’. Além do mais é um filme raro para os nossos padrões, sem um único beijo na boca, sem peitos e bunda de fora e o creiam: o Pereio não fala um único palavrão”, disse. O problema é que o “PCP” falou sim uns palavrões, mas inocentes. Quando o filme foi exibido em sala fechada no Rio ele foi prestigiar. Ligou e disse: “foi o filme mais doce que eu já fiz”. Até hoje fico pensando se foi um sarro ou um elogio.
Paulo Cesar de Campos Velho, acrescentado o nome artístico Pereio, gaúcho de Alegrete, sempre marcou pelas interpretações e voz, emprestadas ao emocional, antes de tudo. Esteve nos personagens mais marcantes do cinema, foi o Pedro, em “Os Fuzis”, Miguel Horta em “O Bravo Guerreiro”, Patrício em “Toda Nudez Será Castigada”; Russo em “Vai Trabalhar vagabundo”, Paulo, em “Eu Te Amo” e em outras centenas de papéis nos palcos, telinhas, telonas, longas, curtas e onde a sua arte pudesse se encaixar. Os diretores, as câmeras e as luzes adoravam o Pereio, o povo amava!
Nunca canso de repetir: seria muito fácil digitar o nome de alguém e baixar a biografia na internet. Algumas pessoas entendem errado esse exercício de lembrar, entrelaçando as nossas vidas, como fosse um culto ao ego. Não é; apenas relatamos, e, de muitas maneiras, o jeito que essas pessoas fizeram parte de nossas vidas, na cidade onde vivemos e de como testemunhamos o quanto foram importantes, por meio daquilo que vivenciamos. Mas lembrar é consternador, sobretudo quando lidamos com a sensibilidade e a despedida. Salve Paulo Cesar Pereio!
- Rogério Bonato