Corvo Coluna
Censura 5G
Não bastasse o passado carcomido pela tesoura da moral alheia, agora enfrentamos uma censura em alta velocidade. A ministra Cármen Lúcia acerta ao alertar que a censura brasileira é mutante: troca o coturno pelo algoritmo, mas continua firme no objetivo de controlar o que se diz, escreve, canta ou pinta. Hoje, censura-se planilha de salário como se fosse pornografia. Esconde-se o valor de uma gratificação como quem guarda um crime. O Brasil não proibiu a censura, apenas modernizou o disfarce.
A Constituição não é um recado de WhatsApp
A Constituição é clara como um sol em meio à neblina moralista: censura é proibida. Sem “mas”. Sem “exceto quando”. A ministra Cármen nos lembra — com o peso de quem conhece os porões e salões da República — que o fantasma da censura jamais deixou o prédio. Mudou de uniforme. Agora veste toga, crachá ou terno escuro de gabinete. E assina pareceres com tinta invisível.
Entre Likes e Algemas
A ministra afirmou que hoje se mata sem armas. E é verdade: mata-se reputação com retuítes, sabota-se carreira com uma postagem truncada, que ganha tração entre indignados de aluguel. Mas a ironia nacional é essa: quem grita por liberdade na rede costuma defender censura no palco, na arte, nos livros. Liberdade seletiva não é liberdade: é patrulha com filtro bolha. E o bolsonarismo digital não inventou isso — só escancarou.
Regulação ou Redoma?
Regular plataformas é necessário, mas exige bisturi, não marreta. A fala de Cármen Lúcia sobre a “mentira que aprisiona” é precisa, mas o risco é cairmos no velho dilema brasileiro: usar a régua da lei para medir o silêncio alheio, e não o próprio barulho. O problema não é só o dado falso, é o dado incômodo que querem calar. E quando a Justiça vira a curadoria oficial do que pode ser dito, sobra pouco espaço para a dúvida — e muito para o medo.
A Democracia não é de vidro, mas trinca
Democracia vive do conflito civilizado, da ideia que incomoda, da arte que provoca, da denúncia que não agrada. Quando a ministra diz que há forças diárias tentando corroer a democracia, ela não exagera. Só erra quem pensa que essas forças vestem preto, falam grosso ou marcham. Hoje elas usam PowerPoint, publicam nota técnica e acusam “desrespeito institucional” para evitar um verso, uma reportagem ou um protesto. O autoritarismo contemporâneo tem cara de compliance. Que tragédia.
Receita de bolo e censura de forno alto
Na ditadura, quando não podíamos publicar uma denúncia, entrava uma torta de maçã. Literalmente. As redações viraram cozinhas improvisadas para engolir censura com glacê. A tesoura dos generais era implacável: riscava linhas, cortava ilustrações e vetava manchetes. Ainda assim, a criatividade brasileira passava pela fresta. A censura era escancarada — um sujeito de paletó lia o texto antes de ir para a gráfica. Hoje, é mais sutil: é o patrocinador que liga, o robô que derruba e os algoritmos que silenciam. Uma barbaridade! A censura moderna não vem de coturno, e sim com crachá, CPF e termo de adesão.
Da farda ao feed
A mutação da tesoura: antigamente, os censores vinham com carimbo e mau humor. Hoje, a censura chega via “comunidade” — aquela que denuncia post, derruba canal e cancela opinião. Não é mais o Estado que veta: são os bandos ideológicos que se alternam no chicote moral. A verdade passou a ser refém da torcida. Se não agrada, some. E se você pensa diferente, vira “inimigo da democracia”, mesmo que esteja apenas perguntando onde foi parar a lucidez. Se antes a censura vinha do alto, agora ela vem dos lados.
Censura é censura
Ela é assim até quando finge amor à pátria. Nada mais cômico — ou trágico — do que ver jovens pedindo o retorno do AI-5 em vídeos no TikTok. Não fariam isso se soubessem que bastava uma letra de música errada para acabar preso, ou uma peça ousada para ser proibida. Ignoram que, à época, bastava uma reportagem crítica para virar alvo. Mas o delírio autoritário, embalado por frases patrióticas cresce. Em nome da “ordem”, plantam o medo. Quem nunca foi calado não sabe o que custa a palavra livre.
O cliente tem sempre razão…
…até quando censura. Vivemos a era da censura de contrato: quem paga, manda calar. Muitos veículos viraram vitrines corporativas, onde a crítica é só um layout ousado. Jornalismo opinativo foi trocado por releases obedientes. Os jornais que ousam bancar a independência morrem lentamente, sufocados por impostos — como o da isenção do papel, enterrada pelo governo anterior. A tesoura de ontem virou o boleto de hoje. Riam: a liberdade de imprensa também depende de quem banca o papel onde ela se escreve.
A arte resiste até sem aplauso
Na ditadura, censuravam peças, cortavam filmes, vetavam exposições. Era o terror dos palcos e das telas. Mas mesmo debaixo da mordaça, o teatro brasileiro driblava com metáfora, o cinema com alegoria, a música com ironia. Hoje, artistas são boicotados não por censores oficiais, mas por campanhas de linchamento digital. A diferença é que, antes, o Estado calava — hoje, é a massa polarizada. A arte só morre quando os artistas acreditam que é melhor agradar que provocar.
A verdade ainda assusta
E assusta mesmo, porque revela demais. O título é perfeito: “Quem tem medo da verdade?”. Muita gente! Governos, partidos, empresas, torcidas organizadas, “influencers” e até cidadãos comuns. A verdade é perigosa porque não se curva. Preferem a negação — e se possível, o apagamento. Mas a verdade não desaparece: ela apenas se esconde, esperando que alguém tenha coragem de trazê-la à luz. O problema nunca foi a verdade — foi o medo de encará-la sem censura, sem maquiagem e sem dono.
Viver é mais que comunicar
Chegar aos 67, depois de tantas estradas, sem jamais ter perdido o prumo da palavra — isso é uma dádiva rara. Acredito que faço isso. Já me disseram o que escrever, como escrever, por que escrever. Mas ninguém nunca me disse por que não escrever. Porque é isso que move: o verbo. O ofício. A inquietação. Se um dia a selva digital engolir os jornais, os livros, as cartas, paciência. Irei com papel de pão e caneta, como quem leva fósforo ao breu. Porque ainda acredito que a verdade acende. E se me resta ainda um pouco de lucidez, que ela continue dizendo: vá em frente. Está tudo certo.
As pernas do tempo
Mantenho uma perna no papel e outra no pixel — e isso às vezes causa cãibra na alma. Mas é o jeito que encontrei de seguir sendo inteiro. Os extremos se afastam, sim. E talvez a travessia nos obrigue a abandonar um dos lados. Mas enquanto for possível, sigo equilibrando — o ontem impresso com o amanhã em nuvem. E sempre com um ouvido voltado a vozes lúcidas como a da ministra Cármen Lúcia, que nos lembram que ser livre é antes de tudo não temer a própria opinião. Se a travessia for inevitável, que ao menos seja bonita — como uma ponte entre mundos.
A estrada e a coragem
Não é fácil dizer sim a essa estrada quando sabemos que as placas somem no caminho. Mas a estrada é boa, se o passo for firme. Fiz de tudo um pouco na vida, e tudo me levou de volta ao mesmo ponto: a comunicação. Não para agradar — mas para dizer. Não para aplaudir — mas para provocar. Ainda que hoje o digital pareça uma selva cheia de bichos famintos, ainda acredito que o pensamento pode ser bússola. E se tiver que ser devorado por alguma fera, que ao menos seja por ter dito o que penso.
Só a imaginação constrói futuro
Talvez este texto esteja mais introspectivo, mais pensante. Mas não é lamento — é balanço. Como tantos que fiz e refiz na vida. O futuro não me assusta. Já vivi a censura fardada. Não temo os trolls mascarados. A diferença é que hoje, a verdade não precisa mais de máquina de escrever — ela flui por mil canais, desde que não nos falte coragem. E se é verdade que o mundo se transforma em bytes, que sejamos humanos no clique. Como diria Lennon, “você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único.” Ainda bem.
- Por Rogério Bonato