Coluna do Corvo

O carimbo da desconfiança

Muito antes dos ataques de 11 de setembro de 2001, a Tríplice Fronteira passou a figurar com destaque no imaginário paranoico da segurança internacional. Para certos setores dos EUA, este pedaço pacífico entre Brasil, Paraguai e Argentina virou esconderijo de terroristas, como se estivéssemos em pleno Oriente Médio tropical. Já houve operações, dossiês e suspeitas. Mas, provas? Até hoje, nenhuma que justifique tanto alarde. Parece que o terrorismo por aqui é mais geopolítico do que real — ou talvez seja só um caso grave de preconceito diplomático.

 

Dinheiro na mesa: caçada ou cortina de fumaça?

Quando o Departamento de Estado dos EUA oferece até US$ 10 milhões por informações sobre as finanças do Hezbollah na Tríplice Fronteira, o mundo se divide entre os que acham que estamos diante de uma ameaça real e os que enxergam aí uma estratégia internacional de pressão. O problema é que, sem provas contundentes, essa “recompensa” só reforça o estigma sobre comunidades inteiras, já tão mal interpretadas. É como dar prêmio por boato — e esperar que ele vire fato. Difícil não parecer caçada ideológica com verniz de segurança global.

 

Aviso oficial, reação informal

A publicação feita pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil causou muito desconforto: manchete de alerta sobre o Hezbollah na região virou conversa de bar, grupo de WhatsApp e meme. Muitos pensaram se tratar de fake news, mas era oficial, em tom solene, com grafia estrangeira e tudo: “Hizballah”. Para os leitores desavisados, parecia nome de aplicativo, mas a coisa era séria. A dúvida que paira: se os EUA realmente acham que há ameaça real, por que se comunicam como se fosse nota de rodapé de série de espionagem?

 

Quando a ficção supera a realidade

A retórica antiterrorismo americana segue implacável — e, vez por outra, esbarra na nossa fronteira. De tempos em tempos, surgem denúncias sobre uma suposta “rede financeira do Hezbollah” operando aqui. Só que nunca encontraram provas. A repetição da suspeita, no entanto, já é suficiente para causar dano. Acusa-se por antecipação, com base em suposições, numa espécie de “Minority Report” da vida real, em que o crime está sempre prestes a acontecer, mas nunca acontece. Só o preconceito é recorrente.

 

Hezbollah ou Partido de Alá?

Para a máquina diplomática norte-americana, o Hezbollah é uma ameaça terrorista internacional. Mas para parte do Oriente Médio e boa parte dos estudiosos, trata-se também de um partido político e movimento social xiita com presença institucional no Líbano. Fundado nos anos 1980, recebeu apoio do Irã e se desenvolveu como milícia de resistência à ocupação israelense. No entanto, para o cidadão comum da Tríplice Fronteira, isso tudo parece coisa distante — quase ficção histórica. O que assusta mesmo por aqui é o aumento no aluguel e o preço dos alimentos.

 

Sírio-libaneses: de empreendedores a suspeitos

A comunidade sírio-libanesa da região é numerosa e antiga. Trouxe comércio, educação, hospitalidade e uma generosa dose de culinária para as ruas da Tríplice Fronteira. Porém, com o surgimento das suspeitas de terrorismo, passou a ser vista com desconfiança por pessoas de fora da cidade. Os mesmos que vendem esfiha, shawarma, quibe, e empregam dezenas de pessoas viraram, de repente, “elementos suspeitos” em relatórios internacionais. Talvez o maior crime cometido por eles seja não se encaixar nos estereótipos de quem acha que árabe só pode ser perigoso. É uma constatação muito triste. Como este colunista tem cara de “turco de armazém”, tenta levar a pressão no humor, porque só ele vence o “terror”.

 

Enviar dinheiro virou pecado?

É comum que membros da comunidade árabe enviem dinheiro para familiares no Oriente Médio. Isso é prática corriqueira em qualquer diáspora. No entanto, quando quem remete tem sobrenome árabe, o gesto vira “financiamento internacional de atividades suspeitas”. Não importa se o dinheiro é fruto do trabalho honesto na loja de eletrônicos, sapatos ou na mercearia. Bastou ter ligação cultural com o Líbano para ser olhado com lupa. O preconceito, esse sim, segue em livre curso internacional.

 

Um nome e uma condenação coletiva

O caso de Assad Ahmad Barakat, acusado de ligação com o Hezbollah, tornou-se símbolo e justificativa para toda uma narrativa de suspeição sobre a região. Embora haja processos e acusações, usá-lo como exemplo para estigmatizar milhares de pessoas é como julgar o Brasil inteiro pelo crime de um deputado. Casos isolados não servem para condenar coletivos. Mas, convenhamos, quando o preconceito encontra um nome, ele se agarra como âncora — mesmo que o navio já tenha naufragado há anos.

 

Segurança em bloco, mas com quem no comando?

O Grupo 3+1, formado por Brasil, Paraguai, Argentina e EUA, visa coordenar ações de segurança na Tríplice Fronteira. Na teoria, ótimo. Na prática, o protagonismo americano nas decisões levanta dúvidas. Afinal, quando o maior interessado também é quem dita as regras, o jogo fica desigual. E enquanto isso, os países vizinhos fazem seu dever de casa: cooperação, controle, integração. Só falta os relatórios refletirem essa realidade, e não apenas o olhar desconfiado de quem enxerga terrorismo onde só há trânsito comercial.

 

A retórica que assusta mais que a ameaça

O impacto econômico de alegações infundadas é real. Ao colar o rótulo de “zona de risco” na região, investidores recuam, turistas hesitam e comunidades perdem visibilidade positiva. As palavras, nesse caso, têm o poder de desestabilizar mais do que as ações. A cada novo documento alarmista, um empresário local perde crédito e um estudante árabe sofre mais uma discriminação. O terrorismo, ao menos por aqui, parece ser mais midiático do que estratégico. O dano, no entanto, é tangível.

 

Provas ou palpite?

Investigações devem se basear em fatos, não em impressões. E até o momento, o que se apresenta contra a Tríplice Fronteira são suposições repetidas com convicção. Não há interceptações, operações contundentes ou julgamentos definitivos. Só o eco insistente de quem, talvez por falta de argumento, decidiu transformar boato em bandeira. Provas concretas ainda são as grandes ausentes nesse teatro geopolítico de sombras. Não podemos crer e nem dar vazão ao mito nazista onde uma “mentira repetida mil vezes se torna verdade”.

 

Convivência é resistência

Em meio às suspeitas e olhares enviesados, a convivência multicultural na Tríplice Fronteira segue como modelo. Árabes, paraguaios, chineses, coreanos, argentinos e brasileiros dividem as calçadas, as escolas e os churrascos de domingo. A cidade é, por natureza, miscigenada — e não parece preocupada com os dossiês que vêm de fora. Talvez seja essa harmonia que incomode tanto quem lucra com o medo.

 

Cultura contra o preconceito

As festas, sabores, roupas e tradições árabes não só resistem — elas enriquecem. Enquanto alguns se preocupam em procurar terroristas em todo beco da fronteira, outros preferem aproveitar o tabule, a dança do ventre e os casamentos regados a chá. A cultura local não precisa pedir licença para existir. E nem se desculpar por não se enquadrar nas planilhas de segurança das potências globais.

 

Repetição também é violência

Toda vez que se repete a associação entre “árabe” e “terrorismo”, perpetua-se um ciclo de violência simbólica. Não há explosão — mas há impacto. As crianças que crescem ouvindo que sua origem é suspeita aprendem a duvidar de si mesmas. É um terrorismo diferente, feito de silêncios, olhares atravessados e portas que não se abrem.

 

Uma fronteira cercada de ignorância

A Tríplice Fronteira não é um campo de treinamento terrorista. É um caldeirão cultural que sobrevive à má fama imposta de fora. Os EUA talvez precisem de vilões geográficos para justificar suas políticas externas. Mas a realidade por aqui é outra: gente que trabalha, sonha, celebra a fé e constrói pontes — mesmo sendo, todos os dias, alvo de um preconceito importado em nome da segurança.

 

Outro ataque? Só de riso.

Foz do Iguaçu já respondeu com elegância — e ironia — às acusações externas. Basta lembrar o célebre “Encontro Internacional de Terroristas”, realizado no Hotel Carimã, que terminou em samba, risadas e embaraço alheio. A piada foi tão bem feita que até veículos internacionais caíram, mandando correspondentes à caça de algo que nunca existiu. Agentes da CIA e do Mossad também marcaram presença, confundindo ironia com alerta real e acordando, no dia seguinte, com uma pilha de multas de trânsito. Depois veio o Festival Internacional de Humor Gráfico, escancarando o absurdo das suspeitas com desenhos mais certeiros que dossiês. Jeffrey Robinson, autor de A Globalização do Crime, que chamou a região de “o ânus do mundo”, sumiu do mapa — talvez com vergonha de ter mirado tão mal. Quem sabe esteja na hora de lançar outra campanha bem-humorada, no estilo “Se Bin Laden passou férias em Foz, o que você está esperando pra vir?” Porque se há algo que a cidade aprendeu a combater com maestria é a ignorância disfarçada de geopolítica.

  • Por Rogério Bonato

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