Coluna do Corvo

O 21 de abril

Amanheci, na segunda-feira, feriado, pensando em escrever algo sobre Tiradentes e o que os historiadores atualizam quando o assunto é a Inconfidência, cujos arquivos não estão lacrados; ainda surgem fontes, cartas e documentos que entram na fila da conferência, se verossímeis ou especulações. Em outra demanda, lembrei os 40 anos da morte de Tancredo Neves, um evento que parece ser, aos poucos, esquecido pelos brasileiros. Mas sonolento, ao abrir a porta para a diarista às 06:45, ela disse: “escutei no ônibus que alguém importante morreu agora cedo”. Antes de ligar o computador corri procurando uma vela, porque toda a semana morre um amigo. Logo me deparei com o falecimento de Francisco.

 

A despedida

Comentam que se o papa não tivesse se esforçado tanto nas celebrações da Semana Santa, ainda estaria vivo. É possível. Mas ele sabia os riscos e compreendia lucidamente a sua fragilidade e talvez diante disso, cumpriu a sua última liturgia, a mais importante para os cristãos, refletindo derradeiramente a morte e ressureição de Cristo. Despediu-se em grande estilo, juntando milhares de fiéis ao seu entorno, gente que foi lá para receber a benção e vê-lo pela última vez. Até nisso Francisco foi feliz!

 

Um reformador

O Papa Francisco não aceitou a missão para brincar. Fez valer cada segundo, organizou, impressionou e reconstruiu o sentido universal do catolicismo, devolvendo-o ao princípio, pautado nos ensinamentos da simplicidade, humildade e amor. Calçou como poucos as sandálias do pescador. Vamos lembrar que os pontífices devem caminhar como Pedro e seguir a edificação das eternas catedrais, um sentido espiritual que não foi compreendido por todos os 266 chefes primazes do catolicismo. Francisco rompeu todas as barreiras para devolver a fé aos que mais precisavam dela. Resta saber quais caminhos o 227º escolhido buscará. O caso é que Jorge Mario Bergoglio criou uma cartilha tão eficiente, que dificilmente alguém se distanciará da pauta.

 

Identificados

Os brasileiros nunca estiveram tão próximos de um papa e por meio de Francisco nos aproximamos mais até dos argentinos, nossos irmãos mais rebeldes. Ele nos dobrou com o humor, com a atenção aos nossos povos originários e a preocupação com tudo o que há, da água às florestas, fauna, flora e a imensidão de pobres e excluídos, mas demonstrou essa preocupação com cada país, em todos os continentes, ricos, pobres, emergentes; enfrentou, como os olhos nos olhos, todas as crises mundiais em seu papado, as guerras, chacinas, a revolta da Natureza e até mesmo a quase convulsão social brasileira, derivada da ignorância e irracionalidade. Francisco foi o “grande cara” da nossa geração. Deus e a eternidade o recebam como bem merece.

O segundo mártir

No dia 21 de abril de 1985, este humilde escrevinhador, mais o Chico de Alencar, Ronildo Pimentel, Beto Maciel, Vinícius Ferreira e o então fotógrafo Álvaro Martins, dividíamos uma pequena mesa encostada na parede do minúsculo Bar da Bruxa, que ficava ao lado do lendário Diário da Cidade, no centro de Foz do Iguaçu. Era um domingo e o jornal circulava às segundas-feiras. A edição já estava fechada e nos reunimos para uma rodada de cerveja. Eis que no aparelho de televisor aparece o porta-voz Antônio Britto: “Lamento informar que o Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite no Instituto do Coração, às 10 horas e 23 minutos […]”.

 

Plantão

Não estávamos no boteco atoa, na noite de um domingo. O Chico nem trabalhava no jornal e era o correspondente do Correio de Notícias, cuja sucursal funcionava na mesma quadra. Ele passou por lá e disse: “Tancredo vai escolher o 21 de abril para morrer, escrevam isso”. A intuição do tarimbado jornalista não falhou. Mal encerrada a edição extraordinária voltamos correndo e fizemos uma sobrecapa, impressa com uma ilustração contrastada, com o rosto do presidente. Lembrando, ele adoeceu durante uma cerimônia religiosa no Santuário Dom Bosco, em Brasília, na véspera da posse em 14 de março de 1985. Agonizou até o feriado de 21 de abril.

 

Como foi a notícia?

Houve um misto de comoção e balacobaco entre os jornalistas, embora a notícia esperada. Parte do texto estava na prancheta, parcialmente “pestapado”; lembro que a biografia de Tancredo era extensa, não encaixava em poucas páginas de um jornal tablóide e precisou ser bastante resumida, pois o político já roubava a cena desde os tempos de Getúlio Vargas. Chegando ao jornal, o Ronildo bateu na janela de um anexo onde dormia o impressor Lucivo Block. Ele mesmo fez a impressão e conforme ia saindo da máquina, encartávamos manualmente, sujando os dedos com a tinta fresca. Beto Maciel disse que faria um poema. Até hoje não li. Provavelmente ele nem escreveu.

 

Tensão nacional

Então vamos pensar: na véspera da posse, o candidato oposicionista fica doente e vai parar em hospital? O desconforto da população superou todas as expectativas, alimentou o imaginário; falavam em golpe, envenenamento, situações difíceis de compreender. Por outro lado, desde em que foi anunciada uma suposta diverticulite, havia romarias por todo o Brasil. José Sarney acabou assumindo o lugar de Tancredo, no tão propalado processo de abertura. Depois de duas décadas nas mãos de governantes militares o Brasil ainda precisou experimentar a transição conturbada, cheirando revés no processo político. O que deveria ser festa, acabou em funeral. Assim o país encarou os novos tempos.

 

E como foi?

O abril de 1985 não foi muito diferente do “agosto de 1954”, dia escolhido por Getúlio Vargas para enfiar uma bala no coração. Existia tensão com a provável interrupção da abertura democrática. Se Sarney não assumisse, seria empossado o então presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães do PMDB. Os militares não aceitariam de jeito algum. Milicos “linha-dura” queriam manter o regime. Na madrugada de 14 para 15 de março de 1985 reuniram-se Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, José Sarney e o ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves. Na discussão encontraram uma saída na Constituição de 1967, e o Congresso Nacional deu posse ao vice-presidente na manhã de 15 de março, às 10 horas. Sarney assumiu o restabelecimento de Tancredo e leu o discurso do enfermo, pregando a conciliação nacional e a instalação de uma assembleia constituinte.

 

E a faixa?

Certas coisas só acontecem no Brasil. A cerimônia de transmissão do cargo aconteceu no Palácio do Planalto e o presidente João Figueiredo não compareceu. Visitando Foz do Iguaçu anos depois, Leitão de Abreu, que fora o chefe da Casa Civil, revelou para este escriba e ao Chico de Alencar, que partiu dele a iniciativa de orientar o presidente Figueiredo não comparecer ao ato de posse, porque Sarney entraria no exercício do cargo como substituto e não como sucessor. “Certamente Figueiredo iria, se fosse o Tancredo, porque eram amigos, apesar das divergências políticas”, disse. A ausência de figueiredo protagonizou uma situação bem inesperada, com Gervásio Batista, o fotógrafo oficial do Palácio do Planalto, entregando a faixa ao novo presidente. “Eu não merecia isso”, teria dito Tancredo.

 

Leitão ao bacalhau

Foz do Iguaçu tem suas estórias e a história. As duas pontas se entrelaçam e sou testemunha. A cidade sempre recebeu figuras importantes da política e uma delas foi o ex-ministro Leitão de Abreu, um homem muito poderoso na história da República. Foi em 1987. O destino certo dos visitantes era Itaipu Binacional, as Cataratas do Iguaçu, o Hotel Bourbon e o restaurante Antônio Maria, do casal Euclydes Madureira e a dona Maria, representantes da culinária lusa de primeira grandeza. Antônio dos Santos Cirillo, dono da Rádio Cultura e iniciando os passos na instalação de uma emissora de televisão ciceroneou o ministro. Armou um sarau no badalado restaurante, nos tempos em que funcionava ao lado de uma enorme piscina popular, às margens da BR 277. Mário Du Trevor Júnior levou o violão e discerniu um impressionante cardápio musical, encantando ilustre convidado.

 

Reunião seleta

Apenas oito pessoas participaram do encontro, e, para variar, foi uma noite divertidíssima. Além do convidado, patrocinador e o músico, faziam parte da seleta mesa o Chico de Alencar, para variar; Ennes Mendes da Rocha, Rosângela Teixeira, Selmo Jandir de Aragão, Vinícius Ferreira e este colunista. Após três garrafas de Casal Garcia Reservado, o vinho verde da época, o sisudo convidado soltou a franga. Elogiou os pratos, à noite, abraçou o Mário, cantou e brindou, como fosse um velho e íntimo amigo: “toca mais uma Marito, um tango”. E o irreverente violonista, ao estilo dos lendários malandros, disse: “é você quem manda pururuca!”.

 

No dia seguinte…

…fui com o Antônio Cirillo levar o Leitão de Abreu ao aeroporto e, no percurso fiz uma bela entrevista. Nem lembro onde foi publicada. O ministro reincorporou os ares de sobriedade, mas usava óculos escuros. Fui com ele no banco de trás do Ford Galaxie e notei que possuía um perfil semelhante ao Alfred Hitchcock. Aquele final de tarde fora emocionante e não por causa do Leitão. Não saía da minha cabeça o “pururuca” e assim que o ministro embarcou, Toninho, distraído, enfiou as duas pernas em uma grade que ficava ao lado da pista e literalmente entalou. Voltei dirigindo a “galocha” ouvindo os uivos de dor e, para o desespero, acabou a gasolina. Um funcionário da Rádio Cultura levou um galão e o Cirillo para a Santa Casa Monsenhor Guilherme.

 

Memória

Um amigo, ao ler a coluna antes de ser publicada elogiou a minha memória. Mas, francamente, quem esqueceria coisas assim? Não lembro o que comi no almoço da Páscoa, mas certas ocorrências não esquecerei jamais. Tudo vai parar em algum lugar desse “HD” que inconscientemente mantemos e, um dia as lembranças vazam para o papel, rádio ou em espaço eletrônico. “Escrevemos para nos livrar das lembranças”. No fim das contas é um processo natural de descarregar o HD orgânico. Mas escrevi uma crônica humorada em O Pasquim 21 relatando a situação. E, recordando, quase todos os coadjuvantes desta coluna não estão mais entre nós (não é para rir); Tiradentes, Tancredo, Leitão de Abreu, dona Maria, o gajo Euclydes Madureira, Toninho Cirillo, Mário Du Trevor, Selmo Aragão, seo Ennes, Álvaro Martins, Chico de Alencar, todos passaram a viver na eternidade e devem estar rodeando o Papa Francisco. Hoje estamos em minoria, somando o Ronildo, Beto Maciel e o Vinícius, graças a Deus testemunhas dessas aventuras.

São Jorge

Hoje é o dia do santo guerreiro, aquele que nos ensina como matar um dragão a cada dia, na luta pela coexistência, debaixo das inúmeras tristezas e coisas ruins que acontecem todos os dias. Mas o 23 de abril, data de São Jorge é especial. Aniversaria a minha queria mãezinha, 89 anos, com saúde, cabeça impecável, conselheira para todas as horas. Dona Gina, originalmente Georgina, é o meu grande exemplo para tudo, inspiração, paz, ensinamentos e lições de persistência. Viva a dona Gina!

 

  • Por Rogério Bonato

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *