Coluna do Corvo

111 vezes pensamento

Neste aniversário de 111 anos, propomos um passeio diferente pela história de Foz do Iguaçu — um roteiro que cruza o tempo, o território e a memória. Cada lembrança é acompanhada por um pensamento de grandes personagens da humanidade, porque acreditamos que Foz é mais do que geografia: é símbolo, é reflexão, é mundo. Se o passado nos moldou, é no presente que revelamos nossa grandeza. Que esta leitura seja um brinde ao que fomos, ao que somos e — com sorte e juízo — ao que ainda seremos.

 

Em nome da Terra (antes da escritura pública)

Antes que existisse Foz, havia rocha. Muita rocha. Basalto em brasa. E tudo isso estava no coração de Gondwana, uma gentileza geológica que unia África, América do Sul e outras partes que se separaram sem deixar testamento. As placas tectônicas fizeram seu papel e nos empurraram para o oeste — aos poucos, Foz foi à praia, banhada pelo Golfo de Pantalassa. Em certos períodos, ficou submersa. Mais tarde, virou terra firme, cortada por rios e cercada por floresta. A rocha basáltica das Cataratas? Testemunha ocular de todo esse divórcio continental. Como diria Darwin: “Não é a mais forte das espécies que sobrevive, mas a que melhor se adapta.” Foz se adaptou. E como!

 

O dia em que o rio mudou de ideia

O rio Iguaçu tinha um plano: correr para o sul e seguir seu caminho como qualquer curso d’água obediente. Mas a geologia — essa senhora de temperamento imprevisível — provocou fraturas e bloqueios, forçando o rio a mudar de rota em formato de “U”, como se fosse fugir de uma dívida. Resultado: nasceu o espetáculo das Cataratas, onde a água cai, mas a beleza sobe. Os degraus criados por falhas tectônicas desenharam as cortinas d’água que hoje encantam o mundo. É a prova de que até a natureza muda de ideia. Como disse Heráclito: “Nenhum homem entra duas vezes no mesmo rio.” Em Foz, o rio é que nunca foi o mesmo.

 

Do instinto à consciência (com parada em Foz)

A espécie “Homo” tem uns 2,5 milhões de anos. Mas foi só há 35 mil que ela começou a se perguntar o sentido da vida — e, pior, a tentar responder. Quando o homem chegou à América do Sul, há uns 15 mil anos, não trazia malas, só vontade de ir embora de onde o clima apertava. Migrou, adaptou-se e, entre savanas e florestas, alguns grupos chegaram ao que hoje é Foz do Iguaçu há cerca de 5 mil anos. Viviam da natureza, sem IPTU nem taxa de lixo e iluminação pública. Como disse Rousseau: “O homem nasceu livre, mas por toda parte encontra-se acorrentado.” Aqui, os primeiros viviam soltos — e talvez fossem mais felizes.

 

O dia em que Foz entrou na história (sem saber disso)

Em 1542, Álvar Núñes Cabeza de Vaca atravessou a região rumo a Assunção. Era espanhol, mas andava mais do que tropeiro de promessa. Ele não “descobriu” Foz do Iguaçu — apenas passou por aqui, cercado por nativos e uma paisagem que hoje seria protegida por decreto ambiental. Com ele, a região entrou no mapa ibérico, mesmo sem querer. Foi o marco inicial da longa travessia entre o domínio indígena e o extrativismo europeu. Como dizia Simón Bolívar: “A história da América é a história de suas invasões.” E Foz, desde então, vive entre fronteiras, caminhos e resistências.

 

Entre o eco e a erva-mate

Depois da passagem de Cabeza de Vaca, a história de Foz mergulhou num silêncio de quase 300 anos. Poucos registros, muito mato e quase nada de progresso — ao menos no sentido europeu da palavra. Foi só com as Missões Jesuíticas que a região voltou ao radar, mas sem fixar endereço. Séculos depois, surgem os ciclos econômicos: primeiro o da erva-mate, que virou ouro verde na região. E assim, entre caingangues dispersos e exploradores gananciosos, a cidade foi tomando forma. Como escreveu Euclides da Cunha (Parodiando Augusto): “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos.” Foz escolheu o primeiro — por bem ou por força da roçadeira.

 

Quando um cientista e um aviador nos colocaram no mapa

Foi uma fotografia que mudou tudo. Moisés Bertoni, naturalista suíço radicado no Paraguai, registrou as Cataratas e enviou a imagem mundo afora. Santos Dumont, homem de visão e asas, viu a foto em Buenos Aires e decidiu visitar. Ao se deparar com as quedas d’água, indignou-se: estavam em terras privadas! Foi em lombo de burro até Curitiba e convenceu o então “presidente do Estado” a desapropriar a área. Assim começou a nascer, com tinta e carimbo, o Parque Nacional do Iguaçu — e por tabela, dois anos antes, a certidão de nascimento oficial da cidade. Como diria o próprio Santos Dumont: “Inventar é imaginar o que ninguém imagina.” E ele imaginou Foz e as suas belezas como bem público.

 

Antes do selfie, a taxa paroquial

Antes dos hotéis de luxo e das filas para selfies nas Cataratas, Foz recebia os primeiros exploradores. Um deles, o marechal Cândido Rondon, cruzava a mata com bússola e coragem. Mas quem transformou paisagem em atração turística foi o padre Monsenhor Guilherme. Criou os primeiros cartões-postais e cobrava uma “taxa de visitação” — parte da renda ia direto para a Paróquia São João Batista. Eis o embrião do turismo iguaçuense: fé, imagem e arrecadação. Como ensinava São Francisco de Sales: “Nada é pequeno aos olhos de Deus.” E o padre soube ver grande num pedaço de floresta.

 

Vargas assinou, a cidade brotou

Nos anos 1930, Getúlio Vargas, com sua caneta, sacramentou a criação do Parque Nacional do Iguaçu, garantindo a preservação da mata e das Cataratas — um gesto raro de visão ambiental em tempos de Estado Novo. Paralelamente, Foz começava a formar seus primeiros bairros, entre picadas, ranchos e o cheiro da lenha. A cidade crescia tímida, mas com base firme. Naqueles tempos, a Marinha, o Exército e até a Aeronáutica fincavam presença na fronteira. Como disse o próprio Getúlio: “Governar é abrir estradas.” Em Foz, abriu-se mata, ruas e possibilidades — e o Parque virou patrimônio antes mesmo da palavra ser moda.

 

Prestes esteve ou não esteve? Eis a questão.

Há quem jure que Luiz Carlos Prestes passou por Foz em sua célebre Coluna revolucionária nos anos 1920. Outros afirmam que ele só olhou de longe, talvez pelo retrovisor de um cavalo. A verdade? Perdida entre fronteiras e o matagal das incertezas. O que se sabe é que muitos revolucionários transitaram por aqui — fosse pelo Brasil, Paraguai, Argentina ou Bolívia. Se Prestes não veio, deixou sua sombra. E como ele dizia: “A revolução é uma coisa viva.” Em Foz, virou lenda. E lenda, como se sabe, não precisa de comprovante de residência — basta resistir ao tempo.

 

A floresta virou cerca, e a natureza foi para o brejo

Quando o ciclo da madeira começou, a mata virou recurso — e recurso, como se sabe, tem dono. Vieram os serradores, depois os bois e as cercas. A agropecuária ganhou força e a devastação correu solta, como boiada sem vaqueiro. Era o progresso a fórceps, sem manual de sustentabilidade. Foz foi abrindo clareiras onde antes havia sombra e biodiversidade. O verde cedeu lugar ao pasto. Como alertou Chico Mendes: “A economia que destrói a natureza não é sustentável.” Mas naquela época, a palavra “sustentável” ainda não tinha sido derrubada da árvore do vocabulário.

 

A civilização chegou de ponte e BR

Nos anos 50, Foz ainda era cercada de mato e mistério. Viajar até Curitiba exigia coragem, paciência e talvez um facão. Mas tudo mudou com dois projetos estratégicos: a Ponte da Amizade, inaugurada em 1965, e a BR-277, concluída em 1969. A primeira conectou Brasil e Paraguai. A segunda, enfim, ligou Foz ao resto do Paraná — e aposentou a bússola e o grito “olha a onça!”. Como disse Juscelino Kubitschek: “O Brasil precisa crescer cinquenta anos em cinco.” Em Foz, cresceu cinquenta em dez, e ainda trocou o aeroporto de lugar, só para caber o futuro.

 

Quando Itaipu virou verbo: transformar

A partir dos anos 70, Foz deixou de ser vila com alma de roça para virar cidade com cara de metrópole. O motivo? Seis letras e uma represa colossal: Itaipu. A hidrelétrica atraiu milhares de trabalhadores, investimentos e barulho de máquinas. De 30 mil habitantes, Foz pulou para mais de 150 mil em poucos anos. Surgiram bairros, escolas, caos urbano e promessas aos montes. A cidade virou laboratório de urbanização acelerada. Como dizia Ulysses Guimarães: “O Brasil tem pressa.” E Foz correu tanto que mal teve tempo de ajeitar os sapatos. Mas seguiu em frente, gerando energia e história.

 

De Tancredo à sacoleira

Em 1985, Foz ganhou sua segunda travessia internacional: a Ponte Tancredo Neves, conectando Brasil e Argentina com concreto e diplomacia. O turismo, antes discreto, tinha virado profissão e vivia o “ciclo do comprismo”: brasileiros atravessando a fronteira com os olhos brilhando e o dólar no bolso (ou no bolso do cunhado). Lojas abarrotadas, filas nas aduanas, e uma certeza: era mais fácil atravessar as pontes do que explicar para o fiscal por que alguém precisa de três liquidificadores. Como dizia Tancredo: “A esperança venceu o medo.” E em Foz, o consumo venceu o bom senso — mas com alegria.

 

Onde antes dava jabuticaba, agora dá rotatória

Nas últimas três décadas, Foz passou por uma mutação urbana. A cidade cresceu tanto que parece que o território encolheu. Onde havia chácaras, pés de manga e galinhas ciscando, hoje há condomínios, uma padaria e uma farmácia a cada esquina. Há vendedores de mexerica também. O asfalto cobriu o barro (vice e versa), a BR-469 virou canteiro de obras e a Perimetral Leste riscou o mapa como régua de urbanista nervoso. Como dizia Darcy Ribeiro: “O Brasil é um projeto de país inacabado.” Foz, ao menos, pegou a planta e está tentando terminar. Só falta combinar com o trânsito e o ânimo da população.

 

Onde a onça dorme tranquila (e o progresso pensa duas vezes)

Depois de décadas de desmate e expansão desgovernada, Foz começou a devolver à natureza o que um dia tomou. A Mata Atlântica vem sendo reconstituída, árvore por árvore, e o Corredor da Biodiversidade abriga de volta bichos que antes só existiam em enciclopédia. Até as onças, símbolo de resistência, voltaram a passear com elegância. Como dizia Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas, e pessoas transformam o mundo.” Em Foz, a consciência ambiental virou lição de casa — com verde no caderno e pegadas no chão.

 

Entre buracos e diplomas, Foz segue em frente

Foz do Iguaçu hoje é muitas em uma só: metrópole turística, polo universitário, vitrine de integração, mosaico de etnias e, sim, cidade com problemas. Asfalto cansa, saúde oscila, a política tropeça — mas há avanços. A cidade abriga tecnologia de ponta, cresce em pesquisa, forma mentes brilhantes e ainda oferece o espetáculo diário das Cataratas. Como disse Martin Luther King: “Mesmo que eu soubesse que o mundo acabaria amanhã, eu ainda plantaria uma árvore hoje.” Foz segue plantando — esperança, conhecimento, futuro. Com tropeços, mas com fé. E com muito mais história por vir.

 

O futuro é logo ali (e depende de nós)

Se Foz mudou tanto em um século, imagine em mais 111 anos. Carros elétricos nas avenidas? Já temos. Energia limpa? Itaipu dá conta. Onças convivendo com drones? Quase lá. O que falta mesmo é garantir que o crescimento não engula a alma da cidade. Que o progresso seja gentil, e o desenvolvimento, justo. Que ninguém fique para trás. Como escreveu Victor Hugo: “O futuro tem muitos nomes… para os corajosos, é oportunidade.” Cabe a nós escolher que cidade vamos deixar para os próximos. E torcer para que eles não precisem desviar dos mesmos buracos.

 

A cidade onde a água cai, mas a vida levanta

Foz é mais que um nome no mapa. É encontro de águas, de povos, de histórias. É onde o mundo se inclina para ouvir o rugido das Cataratas — e volta transformado. Que venham os próximos 111 anos com menos pressa e mais alma. Como diria Guimarães Rosa: “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” E Foz, com todas as suas quedas, continua bela na travessia. Uma Feliz Aniversário cidade amada, do seu filho, reconhecido e abraçado!

  • Por Rogério Bonato

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